Inteiramente só e inteiramente cercado por outros: os livros da família Glass

Publicado na Amálgama, em 02 de abril de 2021

Lucas Petry Bender
16 min readApr 3, 2021

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Parte da coleção “Livros Sagrados do Oriente”, uma das leituras dos Glass.

“Um cordão de isolamento formado por estantes que iam até a altura da cintura cercava três das paredes, com prateleiras lotadas e literalmente encurvadas com o peso dos livros — livros infantis, livros acadêmicos, livros usados, livros de Clube de Leitura, mais o acúmulo ainda mais heterogêneo que escapava de ‘anexos’ menos comunitários do apartamento. (Drácula agora estava ao lado de Páli para principiantes, The Boy Allies at the Somme estava ao lado de Bolts of Melody, The Scarab Murder Case e O Idiota estavam juntos, Nancy Drew and the Hidden Staircase estava por cima de Temor e Tremor.)” (Franny & Zooey, pág. 105)

Poesia, romance e filosofia da maior grandeza ao lado (e por cima e por baixo) de romances populares de amplo consumo e de manual de língua antiga. Estamos na ampla e abarrotada sala do apartamento da família Glass, na altura das ruas 70 do lado Leste de Manhattan. Franny, a mais moça entre os sete irmãos, está adoentada, prostrada no sofá, solenemente recusando as insistentes e heroicas ofertas de caldo de galinha da mãe. Zooey, o segundo mais novo, a seu modo em parte espirituoso, em parte atabalhoado, tenta demover a irmã da sua birra, pois sabe que a sua condição doentia é menos um problema de saúde do que um desânimo, uma confusão, uma nostalgia, uma saudade, um vazio — algo vagamente existencial, de algum modo relacionado com aquilo que os rodeia e cujo peso faz envergar as prateleiras: os livros da família Glass.

Ninguém melhor do que o irmão mais velho, Seymour, saberia o que fazer diante da irmã macambúzia. Em Erguei bem alto a viga, carpinteiros, ficamos sabendo que, cerca de vinte anos antes (ainda no apartamento da esquina da Rua 110 com a Riverside Drive), quando o choro da bebê Franny acordou os irmãos de madrugada, Seymour apanhou a lanterna e iluminou as estantes de livros, para a perplexidade de Buddy, o segundo mais velho, que pensou logo na mamadeira:

“Não é fome.” Ele foi no escuro até a estante de livros, e ficou passando lentamente a lanterna pelas prateleiras. Eu sentei na cama. “O que é que você está fazendo?”, eu disse. “Eu achei que talvez fosse bom ler alguma coisa pra ela”, Seymour disse, e pegou um livro. (pág. 9)

Franny tinha apenas dez meses de vida, mas jura lembrar do conto taoista lido por Seymour, em que aprendemos quais são as qualidades necessárias para procurar os melhores cavalos (na China Antiga, em Manhattan, na sala de casa ou em qualquer outro lugar).

1955. Franny, agora com vinte anos de idade, chora. Seymour não existe mais. Buddy já não vive na cidade de Nova York. A mãe oferece caldo de galinha. Não é fome. É o momento de jogarmos luz sobre as estantes de livros, como fizera Seymour vinte anos antes.

Um dia perfeito para reorganizar os livros

Afinal, quais eram os livros da família Glass? As referências diretas ao objeto livro, como as da abertura deste texto, são poucas. Abundantes são as citações e as referências a autores, revelando as influências literárias, filosóficas e espirituais espalhadas ao longo de toda a obra de Salinger envolvendo a família Glass — recentemente reeditadas no Brasil pela editora Todavia, com tradução de Caetano W. Galindo: Franny & Zooey, Erguei bem alto a viga, carpinteiros & Seymour, uma introdução, bem como alguns contos de Nove Histórias (especificamente Um dia perfeito para peixes-banana, para o propósito deste texto) [1]. Levando em consideração o contexto em que as referências aparecem, as suas eventuais repetições e o grau de importância que os personagens manifestam a seu respeito, pode-se compor o seguinte panorama das estantes da família Glass e de suas preferências literárias e filosóficas, começando pelas principais:

Safo — Versos da poeta da Grécia Antiga dão o título da novela Erguei bem alto a viga, carpinteiros, escritos a sabonete por Boo Boo no espelho do banheiro, num dos momentos mais encantadores da obra salingeriana. Franny reproduz outros versos em carta ao namorado, em que revela estar fascinada pela poetisa. Safo foi uma preferência de todos os irmãos Glass, a partir da influência de Seymour. [2]

Relatos de um peregrino russo Clássico da espiritualidade cristã, de autoria desconhecida, séc. XIX. Junto à sua continuação, O Peregrino continua sua jornada, eram livros de cabeceira de Seymour e estão no coração das novelas Franny & Zooey, precipitando a crise emocional de Franny, obcecada pela simplicidade da força espiritual que emana da obra e transtornada pela dificuldade de conciliá-la com o mundo.

Livros Sagrados do Oriente, compilados por Max Müller — Publicados nos EUA de 1879 a 1910, em 50 volumes, fonte essencial da história das religiões e dos estudos de religião comparada, com traduções para o inglês de textos fundamentais do hinduísmo, budismo, taoismo, confucionismo, zoroastrismo, jainismo e islamismo. Buddy menciona a existência concreta da coleção na sala do apartamento. Diversos textos orientais que identificaremos em seguida constavam no compêndio — e é provável que o conto taoista lido para a pequena Franny procedesse de um dos volumes.

Bíblia e Jesus — Com diversas menções e referências a episódios do Antigo e do Novo Testamento (incluindo passagens cujas interpretações das crianças Glass são de pura graça), destaca-se a menção a Jesus (e aos próximos abaixo) entre as referências que Buddy e Seymour procuravam transmitir precocemente para os irmãos mais novos, com a intenção de que os pequenos viessem a ser “capazes de conceber um estado de existência em que a mente conhece a fonte de toda luz. (…) os santos, os arhats, os bodisatvas, os jivanmuktas — que sabiam alguma coisa ou todas as coisas a respeito desse estado de existência.” (Franny & Zooey, pág. 60)

Buda (ou Gautama) — Mencionado junto a Jesus na passagem acima, bem como indiretamente referenciado em diversas alusões ao budismo, destacando-se o Voto de Bodisatva, recitado mentalmente por Zooey diariamente desde os dez anos de idade, e o Sutra do Diamante, texto do cânone budista chinês.

Lao-Tsé — Filósofo da China Antiga a quem se atribui o livro do Tao, é citado na mesma passagem acima, junto a Jesus e Buda. Entre outras referências à literatura taoista, o taoismo clássico é citado como uma das raízes orientais da filosofia de Buddy e Seymour.

Sri Ramakrishna — Hindu indiano do séc. XIX, é citado ao lado dos demais na passagem acima. Um trecho do Evangelho de Sri Ramakrishna é reproduzido no quadro de citações na parede do quarto de Buddy e Seymour, ao qual retornaremos adiante.

Shankaracharya — Incluído junto aos anteriormente citados, o indiano é considerado o principal pensador do Advaita Vedanta, ramo do hinduísmo que também é mencionado entre as raízes orientais da filosofia dos irmãos mais velhos.

Huineng — Monge zen budista, também citado na passagem junto aos anteriores.

Upanixades — As escrituras hindus são mencionadas em outro trecho, mas no mesmo sentido de formar a base espiritual dos irmãos menores, por influência de Buddy e Seymour.

Mestre Eckhart — O místico cristão medieval é citado junto à referência anterior.

Poesia chinesa e japonesa — Eram lidas pelos irmãos Glass nos idiomas originais, embora Buddy ressalte a qualidade das traduções para o inglês. Entre os tradutores elogiados, destaca-se R. H. Blyth, britânico divulgador do zen budismo e da cultura japonesa no Ocidente, também enaltecido no diário de Seymour, devido à sua definição de sentimentalismo. Entre os poetas, são mencionados Issa, Buson, Shiki, Bashô, Lao Ti-kao, Tang-li, Ko-huang, P’ang e Saigyo (com destaque para o primeiro, por ter um haicai de sua autoria no quadro de citações na parede do quarto de Buddy e Seymour).

Kafka — Com cinco citações literais transcritas, entre outras menções, é o autor com a maior quantidade de aparições. Além da citação que abre Seymour, uma introdução, tem frases suas no quadro na parede do quarto de Buddy e Seymour. É amado por Buddy como sendo “um dos quatro defuntos, os quatro Doentes ou solteirões subajustados” mais significativos para a compreensão dos “processos artísticos modernos”, ao lado de Kierkegaard, Van Gogh e, supõe-se, do próprio Seymour. A única referência expressa de título das obras de Kafka citadas é dos Diários; todos os fragmentos transcritos, na verdade, parecem ser de diários, cartas ou aforismos.

Kierkegaard — Acompanha Kafka com citação na abertura de Seymour e na menção aos quatro Doentes amados por Buddy. Além disso, Temor e Tremor aparece na descrição das estantes de livros reproduzida na abertura deste texto.

Emily Dickinson — Não apenas é referenciada na mesma descrição da abertura (Bolts of Melody), como é adorada por Franny, segundo Zooey.

Epiteto — Além de constar no quadro de citações do quarto dos irmãos mais velhos, o escravo romano que se tornou expoente do estoicismo é muito admirado por Franny, que lembra do dia em que encheu de frases suas o quadro-negro da sala de aula da faculdade.

Shakespeare — Dos seis momentos em que é referenciado, o mais significativo é quando Zooey alude à célebre cena de Hamlet por meio do “crânio do Yorick”, tanto para expressar a sua paixão pela arte de representar, quanto para advertir Franny da transitoriedade da vida.

William Blake — Quando esteve enfermo no Exército, o único alívio de Buddy foi por meio da leitura de um poema (não identificado) de Blake. Mencionado junto a Shakespeare e aos próximos abaixo como os autores a serem introduzidos aos irmãos menores após aquela formação espiritual à qual aludimos mais cedo. (Não custa acrescentar que o poeta recebe menção elogiosa em Hapworth 16, 1924, conto que prometi não mencionar.)

Homero — Figura ao lado de Shakespeare e Blake na referência acima.

Whitman — Idem anterior.

Chuang Tzu — O sábio chinês das tradições taoista e zen budista é citado duas vezes.

Mu-Mon-Kwan — Coleção de koans compilados no séc. XIII, consta no quadro de citações do quarto de Buddy e Seymour (assim como os próximos da lista). Para dar uma ideia da importância da relação entre os koans e a família Glass, basta dizer que Salinger inicia a história da família citando um koan zen (na epígrafe de Nove Histórias, em 1953) e encerra com uma espécie de koan de autoria própria (ou de Buddy, se preferir), na última frase de Seymour, uma introdução, em 1963 (vá correndo ao livro verificar, caro leitor; correndo e devagar.)

Bhagavad Gita — Um trecho do texto religioso hindu é transcrito no quadro de citações.

Anna Kariênina, de Tolstói — Além da reprodução de um trecho do romance no quadro de citações, o autor é mencionado de passagem em outros momentos (e muito prestigiado em Hapworth por um Seymour que quer nada menos que as obras completas do russo).

Marco Aurélio — Do grande estoico romano reproduz-se a frase “Aquilo amava acontecer”, no quadro de citações.

Ring Lardner — Sem edição no Brasil, foi colunista esportivo e contista relevante nos EUA. Consta no quadro de citações (e vale lembrar que é citado como um dos autores favoritos de Holden Caulfield, de O Apanhador no Campo de Centeio).

De Caussade — O jesuíta francês tem frase reproduzida no quadro de citações.

São Francisco de Sales — Reproduz-se no quadro de citações oração atribuída ao santo católico, autor de importantes obras apologéticas.

Dombey & Filho, de Dickens — Zooey leu o romance aos oito anos de idade. Betsey Trotwood, personagem de outro romance do autor (David Copperfield), é mencionada de passagem por Buddy. (E é bom que se diga que Dickens é reverenciado em Hapworth).

O grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald — Livro de formação de Buddy, que o leu aos doze anos de idade.

O jardim das cerejeiras, de Tchékhov — O talento do russo é elogiadíssimo por Buddy. Há outra menção ao autor sem maior importância.

Vivekananda — Principal discípulo de Sri Ramakrishna e importante divulgador do hinduísmo no Ocidente, recebe uma distinta menção por parte de Buddy (e outra ainda mais distinta por parte de Seymour em Hapworth).

A nuvem do não saber — Franny compara o conteúdo desse clássico da mística cristã com os Relatos de um peregrino russo e com mantras budistas.

Daisetz Suzuki — Autor de vários livros de divulgação do zen budismo, é mencionado por Buddy quando introduz o assunto da formação espiritual aos irmãos mais novos.

O Idiota, de Dostoiévski — Consta na passagem que abre este texto. (O autor também é citado de modo elogioso por Lane, o namorado de Franny — mas isso não favorece o russo).

Drácula, de Bram Stoker — Mencionado na citação de abertura deste texto.

Freud — Buddy ironiza as pretensões científicas da psicanálise, mas estima Freud como “poeta épico”.

John Keats — Figura em poema escrito por Seymour aos oito anos de idade, relembrado por Boo Boo.

Rainer Maria Rilke — Não é diretamente citado, mas supõe-se que seja o poeta de língua alemã que Seymour considerava o “único grande poeta do século”, segundo sua esposa Muriel. Há uma menção circunstancial às Elegias de Duíno feita por Lane, namorado de Franny.

T.S. Eliot — No excepcional diálogo com Sybil na praia, Seymour cita The Waste Land quando diz “mesclando memória e desejo”. O poeta também é mencionado de passagem em carta de Lane para Franny.

Van Gogh — Embora seja nomeado como um dos quatro Doentes amados por Buddy, não sabemos se a referência inclui alguma literatura (edição das cartas ou biografia), mas é razoável supor que sim.

Páli para principiantes — Manual da antiga língua em que foram escritos os textos sagrados budistas, identificado na descrição das estantes, assim como os próximos (que são citados menos pela relevância do que pelo efeito cômico da diversidade de livros).

The Boy Allies at the Somme — Um dos volumes de coleção juvenil de aventuras de soldados Aliados na Primeira Guerra Mundial, de Clair W. Hayes e Robert L. Drake.

The Scarab Murder Case — Popular romance de crime de S.S. Van Dine (pseudônimo de Willard Huntington Wright).

Nancy Drew and the Hidden Staircase — Bestseller de mistério de Carolyn Keene (pseudônimo de Mildred Benson). [3]

(Eu sei que disse que deixaria Hapworth 16, 1924 de fora, mas qual é a graça de nunca contradizer-se? A empolgação do pequeno e prodigioso Seymour solicitando aos pais os seguintes livros é preciosa demais para não levarmos em conta: as obras completas de Jane Austen e de Proust; todas as histórias de Sherlock Holmes (Conan Doyle); Dom Quixote de Cervantes; Os Ensaios de Montaigne; livros não especificados das irmãs Brontë, de Victor Hugo, de Flaubert e de Balzac; com ressalvas, algo de George Eliot, Thackeray, John Bunyan, Maupassant, entre outros menos cotados e mais obscuros, incluindo livros orientais, de História etc. — além dos que já constavam na nossa lista e de uma menção elogiosa a Wordsworth.)

Uma das muitas e magníficas capas de Arthur Getz para a revista The New Yorker

Um vazio na estante

Enquanto vamos recolocando os volumes de volta nas estantes (o leitor que não estiver sob um ataque de espirros depois de tanto pó pairando no ar — e que deve estar se perguntando se não há mesmo um Melville, um Mark Twain, um Platão, um Nietzsche que tenha passado despercebido — enquanto assoa o nariz, o leitor pode ter a sorte de achar uma bolinha há muito perdida atrás de uma estante — as bolinhas de ping-pong caíam “naqueles lugarzinhos safados atrás das estantes de livros” (Erguei, pág. 168) — enquanto retomamos o fio da meada depois de tantos títulos e autores, é oportuno notar que talvez a referência mais significativa, de certo modo, seja ao trio “Kilroy, Cristo e Shakespeare”, que em certo momento é invocado por Buddy (logo antes de oferecer um surpreendente buquê de parênteses ao leitor). Não serei eu a dizer o que exatamente Buddy tinha em mente com esse trio de sucesso (Kilroy, para quem não foi apresentado, é um simpático e narigudo proto-meme da 2ª Guerra Mundial, um grafite que demarcava onde os soldados norte-americanos tinham chegado; Cristo é um meme de ainda maior abrangência e antiguidade, e Shakespeare é o Filho do Homem, segundo Harold Bloom), mas o que interessa aqui é que os três, assim reunidos e perfilados, formam um peculiar amálgama entre cultura popular, cultivo espiritual e formação literária, bem ao gosto dos irmãos Glass.

Humor, entretenimento, espiritualidade, filosofia, estética, imbricados de um jeito que Salinger fazia como ninguém — se sobram referências literárias e sobretudo espirituais nesta barafunda que estamos fazendo, caro leitor, é porque as referências à cultura popular e ao entretenimento estão igualmente e numerosamente espalhadas por todas as histórias da família Glass, mas neste texto pretendemos tão somente soprar dos livros o pó que abunda, assoar narizes e falar apenas de coisas sérias — algo que aprendemos também com outro habitante convicto de Manhattan, da mesma geração que os Glass mais jovens, e com algo dessa mesma espécie de fome religiosamente mundana (ou mundanamente religiosa?) que mistura referências cômicas e trágicas sem cerimônias e com desenvoltura; terá o jovem Woody Allen jogado bolinha de gude no meio-fio com algum Glass, e quem sabe aprendido a não mirar tanto e a sentir-se feliz por perceber que há “um pouco de um monte de acaso em tudo”? (Erguei, pág. 174)

O que sabemos é que os Glass iam ao cinema, à Broadway, a espetáculos de variedades, de comédia e de vaudeville, ouviam (e participavam) de shows de rádio, prestigiavam jogadores de baseball, liam revistas (como Ace Comics, Time, Harper’s Bazaar), sem falar nas lojas e marcas que consumiam (de sorvetes Louis Sherry a blazers Norfolk) — tudo isso compondo um arranjo harmonicamente caótico com as referências literárias, poéticas, budistas, cristãs, zen, hinduístas etc.

Não obstante a exuberância peculiar do conjunto de referências culturais dessa invulgar família de Manhattan, e do humor constante e engenhoso que transparece nas suas cartas, diários e diálogos, entrevemos aqui e ali os conflitos interiores e a tremenda angústia existencial que atravessava os Glass, culminando no exílio voluntário de Seymour ao país desconhecido do qual fala Hamlet.

Na esteira dos traumas familiares e do anseio por uma estabilidade emocional, e diante da insistência da mãe por soluções psicológicas simplistas para o sofrimento de Franny, que não levam em consideração todo esse contexto espiritual e cultural que remonta aos irmãos mais velhos, em certo momento Zooey diz para a mãe:

“Se você não consegue, ou não quer pensar no Seymour, então vai lá de uma vez e chama algum psicanalista ignorante. Pode ir mesmo. Você vai lá e chama algum analista com experiência em ajustar as pessoas aos prazeres da televisão e da revista Life toda quarta-feira, e viagens pela Europa, e a bomba H, e as eleições pra presidente, e a primeira página do Times, e as responsabilidades da Associação de Pais e Mestres de Westport e Oyster Bay, e sabe Deus mais o quê de gloriosamente normal — vai lá e faz isso, e eu te juro, em menos de um ano a Franny vai estar ou num hospício ou em alguma porcaria de um deserto carregando uma cruz em chamas.” (Franny & Zooey, pág. 95–96)

Há quase um arrependimento em certas manifestações de Buddy quanto ao fardo que foi colocado sobre os ombros dos irmãos menores a partir de tantas leituras e referências espirituais, e Zooey se manifesta de modo ambivalente sobre essa herança transmitida pelos irmãos mais velhos, ao mesmo tempo em que, por outro lado, há uma recusa a simplesmente se deixar levar pela banalidade e pelo conforto psicológico, conflito que põe em movimento toda a motivação por trás de Franny & Zooey, mas que é brilhantemente levado a termo pelo resgate da essência para qual tudo converge, simbolizada pela imagem da Gorda — epifania sugerida por Seymour de uma pessoa solitária, jamais conhecida, mas de algum modo compartilhando do momento presente, mesmo à distância, mesmo incógnita.

Seymour, uma conclusão

Com sorte, nos percebemos Gordas diante do espelho de Salinger. “Tudo o que o Cânone Ocidental pode nos trazer é o uso correto de nossa solidão, essa solidão cuja forma final é o confronto com nossa mortalidade”, escreve Harold Bloom [4], referindo-se ao fruto da leitura dos grandes clássicos nas nossas vidas. Podemos dizer o mesmo quanto ao cânone literário (ocidental e oriental) lido pela família Glass. “Esse leitor não lê pelo prazer fácil ou para expiar alguma culpa social, mas para ampliar uma existência solitária. (…) Como se pode ensinar solidão? A verdadeira leitura é uma atividade solitária, e não ensina ninguém a se tornar um melhor cidadão”, acrescenta o grande crítico. Por mais complicado que tenha sido o confronto de Seymour com sua mortalidade (e com sua cidadania, por assim dizer), o seu legado aos irmãos está intimamente ligado à compreensão dessa solidão a que Bloom se refere, materializado nos livros que ocupam as paredes da sala. Pois, como coloca Vilém Flusser:

“É por isto que a biblioteca é, de todos os quartos da casa, o que dá mais abrigo. Lá está-se inteiramente só, e inteiramente cercado por outros não obstante. (…) Se quero romper tal solidão, devo escolher um livro qualquer, tirá-lo da estante, e abri-lo. Mas com isto a história recomeçará, com todos os seus perigos. E se acaso vir a reconhecer-me em tal livro, ressurgirá a pergunta: ‘que é um livro?’. E não haverá resposta.” [5]

Se, como define Bloom, Hamlet é o grande embaixador da morte na literatura, podemos dizer que Seymour Glass, permanentemente presente em sua ausência — gênio que conhecemos apenas de calção, roupão e pés descalços, um dos mais fascinantes personagens da segunda metade do século XX — é para nós, leitores, algo assim como o arauto das bibliotecas domésticas, esse lugar de abrigo e de perdição, de sede de conhecimento e de ausência de respostas; Seymour Glass é o grande mensageiro dessa espécie particular de solidão, que tanto nos apavora e que tanto amamos.

Quando tudo isso começa a fazer sentido para Franny, não há mais necessidade de palavras; a frase final se impõe: “Por alguns minutos, antes de cair num sono profundo e sem sonhos, ela só ficou quieta, sorrindo para o teto”. O resto é silêncio — mas um silêncio prenhe de vida, semelhante ao som de uma única mão que aplaude.

Notas:

[1] Deixaremos de lado Hapworth 16, 1924 (publicada na revista The New Yorker em 1965), a outra história dos Glass que conhecemos, por não ter sido publicada em livro pelo autor e por não ter tradução para a língua portuguesa.

[2] Incorremos em redundância destacando a influência de Seymour, pois tudo indica que provém totalmente dele o interesse pelos livros na família. Sabemos que a mãe “jamais, nem na mais leve acepção do termo, foi uma leitora de livros” (Erguei, pág. 161), e tampouco há indícios do hábito de leitura por parte do pai. Sabemos que Seymour, criança prodígio, frequentava a biblioteca pública desde os seis anos de idade — e Hapworth não é nada mais que uma longa carta do pequeno Seymour, solicitando aos pais o envio de toneladas de livros ao acampamento infantil em que ele e Buddy estão passando o verão, com instruções expressas de como solicitar o empréstimo dos livros à biblioteca pública; em casa, portanto, ainda não deviam existir as estantes repletas de livros.

[3] Outros autores e obras cujas referências remetem a terceiros, ou que não são necessariamente elogiosas, ou que constituem mera retórica — enfim, referências em que, salvo engano, não se demonstram traços de influência ou de leitura concreta ou interessada por parte dos Glass: Pascal, Baudelaire, Stendhal, Turgueniev, Melville, Tom Sawyer, Thomas Wolfe, Browning, Shelley (e Ozymandias), Frankenstein, Somerset Maugham, Sherwood Anderson, Thoreau, Colette, Sócrates (e Críton), Schopenhauer, Tomás de Kempis, Hans Christian Andersen, Peter Pan, Robert Burns, Cyrano de Bergerac, Filocalia, Lenormand, Diário de Kilvert, Mary Baker Eddy, W.C. Fields, The Playboy of the Western World, Louis Bouilhet, Max Du Camp, A leste do sol e a oeste da lua, São Francisco de Assis, Emily Post, John Buchan, Little Black Sambo.

[4] O Cânone Ocidental, ed. Objetiva, 2010, pág. 46. Na sequência, citação das pág. 668–669.

[5] Do ensaio Livros, disponível aqui e transcrito acolá.

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Lucas Petry Bender

Nasci em 1985, vivo em Porto Alegre. Escrevo sobre livros e filmes.