Excertos de “O Sentimento da Beleza” (1896), de George Santayana

Trad. Nilton Ribeiro, ed. Danúbio, 2018

Lucas Petry Bender
6 min readApr 25, 2021

Tais pensadores naturalmente consideram que os valores morais são intrínsecos e supremos; e já que estes valores morais não surgiriam senão diante da existência ou iminência de males físicos, eles abraçam o paradoxo de que sem o mal não seria possível imaginar nenhum bem.

As duras exigências da apologética sem dúvida contribuíram para colocá-los nesta posição, da qual o ar da primavera ou a visão de uma criatura bem formada seria o bastante para desalojá-los. O seu temperamento ético e os grilhões da sua imaginação os impedem de reconsiderar a sua suposição original e de compreender que a moral é um meio e não um fim; que ela é o preço pela falta de adaptação dos homens, e a consequência do pecado original da inaptidão. É a compressão da conduta humana dentro dos estreitos limites do seguro e do possível. Elimine os perigos, elimine a dor, elimine as ocasiões de piedade, e a necessidade da moral desaparecerá. Caso em que dizer “não farás isso ou aquilo” seria impertinente.

Mas esta eliminação dos preceitos não interromperia a vida. Os sentidos ainda estariam abertos, os instintos ainda funcionariam e conduziriam todas as criaturas às suas moradas e às suas ocupações que lhe são próprias. A variedade da natureza e a infinitude da arte, com a companhia dos nossos amigos, preencheriam o lazer dessa existência ideal. Esses são os elementos da nossa felicidade positiva, as coisas que, em meio a milhares de aborrecimentos e vaidades, proporcionam os verdadeiros benefícios da vida. (pág. 33)

Se concebemos a felicidade do mesmo modo que um poeta a conceberia, isto é, como baseada nos seus fatores emocionais e sensíveis imediatos, se vivemos no presente e fazemos com que a nossa felicidade consista nas coisas mais simples, — respirar, ver, ouvir, amar e dormir, — então a nossa felicidade tem a mesma substância, os mesmos elementos, do nosso prazer estético, porque é o prazer estético que faz a nossa felicidade. Contudo, os poetas e artistas, com as suas alegrias imediatas e estéticas, não são considerados homens felizes; eles também são capazes de ser barulhentos nas suas lamentações, e de considerar a si mesmos como eminente e tragicamente infelizes. Isso se deve à intensidade e inconstância das suas emoções, à sua imprevidência e à excentricidade dos seus hábitos sociais. Entre eles predominam as funções sensoriais e vitais, ao passo que os instintos gregários e sociais são subordinados e com frequência prejudicados; e a infelicidade deles consiste na sensação de não estarem adaptados para a vida no mundo no qual nasceram.

Mas o homem é sobretudo um animal político, e nele as necessidades sociais são quase tão fundamentais quanto as funções vitais, e com frequência mais conscientes. A amizade, a riqueza, a reputação, o poder a influência, quando somados à vida em família, constituem seguramente os principais elementos da felicidade. O desejo dessas coisas, a consciência de sua posse ou ausência, nos alcança apenas quando refletimos, quando planejamos, considerando o futuro, reunindo as palavras dos outros, recordando o menosprezo e a admiração que sentem por nós, imaginando situações possíveis nas quais a nossa virtude, a nossa fama ou o nosso poder se tornaria conspícuo, comparando a nossa sorte com a dos outros, e passando por outros processos discursivos do pensamento. A apreensão, a dúvida, a solidão, são coisas que surgem vivamente no nosso espírito quando refletimos sobre as nossas vidas: não podem facilmente se tornar qualidades de nenhum objeto. Se por acaso se tornam, adquirem um grande valor estético. Por exemplo, o “lar”, que no seu sentido social é um conceito de felicidade, quando se materializa em uma pequena casa de campo com o seu jardim se torna um conceito estético, torna-se uma coisa bela. A felicidade é objetivada, e o objeto embelezado.

Os objetos sociais, entretanto, raramente são estéticos desta forma, porque não podem ser tão claramente imaginados. Eles são vagos e abstratos, e verbais ao invés de sensoriais em sua constituição. Portanto, os grandes sentimento que os acompanham não podem ser convertidos em beleza imediatamente. Se artistas e poetas são infelizes, é porque em última análise a felicidade não os interessa. Eles não podem buscá-la seriamente, porque os componentes da felicidade não são componentes da beleza, e uma vez que estão apaixonados pela beleza, eles negligenciam e desprezam aquelas virtudes sociais não estéticas em cuja operação a felicidade se encontra. Por outro lado, aqueles que buscam a felicidade concebida meramente em termos abstratos e convencionais, como o dinheiro, o sucesso ou a respeitabilidade, com frequência perdem aquela parte real e fundamental da felicidade que brota dos sentidos e da imaginação. Este é o elemento que a estética fornece à vida; porque a beleza também pode ser causa e fator de felicidade. Contudo, a felicidade de amar a beleza é sensível demais para que seja estável, ou derradeira demais, sagrada demais, para que seja considerada felicidade pelo espírito mundano. (pág. 55–56)

Estamos, com frequência, demasiado absorvidos nos objetos e muito pouco concentrados em nós mesmos e na nossa vontade inalienável, para que possamos enxergar a sublimidade de um panorama agradável. Somos então seduzidos e lisonjeados, e nos entregamos a um comércio com esses bens externos, e a consumação da nossa felicidade residiria na perfeita compreensão e apreciação da natureza deles. Este é o ofício da arte e do amor; e a sua realização parcial vê-se em toda percepção da beleza. Mas quando somos limitados neste esforço compassivo com o qual buscamos unidade e compreensão; quando nos deparamos com um grande mal ou com um poder implacável, somos levados a procurar a nossa felicidade em uma estrada mais curta e heroica; então reconhecemos a estranheza incontornável daquilo que se apresenta diante de nós, e nos enrijecemos contra tal coisa. Assim, pela primeira vez sentimos que é possível separar-nos do nosso mundo e da nossa estabilidade abstrata; e com isso vem o sublime.

(…) O sentimento do sublime é essencialmente místico: é o transcender de uma percepção clara em favor de um sentimento de unidade e de volume. Assim, na esfera moral temos a anulação mútua das paixões no coração que as inclui a todas, e a aplacação final delas sob o olhar que as abrange. (…)

Mas o sublime não é o feio, como algumas de suas descrições podem nos levar a supor; ele é o supremo e inebriantemente belo. Ele é o prazer da contemplação que atinge uma tal intensidade que começa a perder a sua objetividade e declara-se, o que sempre foi essencialmente, uma paixão interna da alma. Porque enquanto na beleza encontramos a perfeição da vida mediante a imersão no objeto, no sublime encontramos uma perfeição mais pura e mais inalienável mediante uma total oposição ao objeto. O surpreendente alargamento da visão, a repentina fuga dos nossos interesses comuns e a identificação de nós mesmos com algo permanente e supra-humano, algo muito mais abstrato e inalienável que a nossa personalidade instável, tudo isso nos arrasta para longe dos turvos objetos diante de nós, e nos eleva até uma sorte de êxtase.

(…) O objeto é sublime quando nos esquecemos da nossa segurança, quando escapamos totalmente de nós mesmos, e passamos a viver, por assim dizer, no próprio objeto, imitando vigorosamente os movimentos dele, e dizendo: “Sejamos ambos um só, oh impetuoso!” Esta passagem ao objeto, para viver a sua vida, é sem dúvida uma característica de toda contemplação perfeita. Mas quando nos transportamos desta forma e nos elevamos e interpretamos uma personagem mais nobre, sentindo a alegria de uma vida mais livre e empolgante que a nossa, temos uma experiência de sublimidade. A emoção não nasce da situação que observamos, mas dos poderes que concebemos; não conseguimos simpatizar com os marinheiros que lutam por suas vidas porque simpatizamos demais com o vento e com as ondas. E esta crueldade mística pode se estender inclusive a nós mesmos; podemos sentir uma tal fascinação pelas forças cósmicas em nossa volta que somos tomados por uma alegria cruel ao pensar na nossa própria destruição. Podemos nos identificar com a mais abstrata essência da realidade, e, desde aquela altura menosprezar os acidentes humanos da nossa própria natureza. Senhor, dizemos, embora podeis me matar, ainda assim confiarei em Vós. A sensação do sofrimento desaparece na sensação da vida, e a imaginação sobrepuja o entendimento. (pág. 174–177)

É realmente infeliz aquele homem que em toda a sua vida jamais teve um vislumbre da perfeição, que no êxtase do amor, ou no deleite da contemplação, jamais pôde dizer: o alcancei. Tais momentos de inspiração constituem a fonte das artes, as quais não têm nenhuma função mais elevada que renová-las.

Uma obra de arte é, sem dúvida, um monumento a tal ocasião, o memorial de tal visão; e o seu encanto varia de acordo com a sua capacidade de nos chamar das distrações comuns da vida para a alegria de uma atividade mais natural e perfeita. (pág. 189)

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Lucas Petry Bender

Nasci em 1985, vivo em Porto Alegre. Escrevo sobre livros e filmes.