Excertos de “O Cânone Ocidental” (1994), de Harold Bloom
Trad. Marcos Santarrita, ed. Objetiva, 2010
O “Valor Estético” é às vezes visto mais como uma sugestão de Immanuel Kant do que uma realidade, mas não tem sido essa a minha experiência em toda uma vida de leitura. (pág. 11)
Eu me sinto muito sozinho hoje defendendo a autonomia do estético, mas sua melhor defesa é a experiência de ler Rei Lear e depois ver a peça bem interpretada. Rei Lear não deriva de uma crise na filosofia, e tampouco pode a sua força ser explicada como uma mistificação de algum modo promovida por instituições burguesas. É um sinal de degeneração do estudo literário o fato de alguém ser considerado excêntrico por afirmar que o literário não depende do filosófico, e que o estético é irredutível à ideologia ou metafísica. A crítica estética nos devolve a autonomia da literatura de imaginação e a soberania da alma solitária, o leitor não como uma pessoa na sociedade, mas como o eu profundo, nossa interioridade última. Essa interioridade profunda num escritor forte constitui a força que repele o peso maciço da realização passada, para que toda originalidade não seja esmagada antes de manifestar-se. A grande literatura é sempre reescrever ou revisar, e baseia-se numa leitura que abre espaço para o eu, ou que atua de tal modo que reabre velhas obras a nossos novos sofrimentos. Os originais não são originais, mas essa ironia emersoniana dá lugar ao pragmatismo emersoniano de que o inventor sabe como tomar emprestado. (…) o desejo de escrever grandiosamente é o desejo de estar em outra parte, num tempo e lugar nossos, numa originalidade que deve combinar-se com a herança, com a ansiedade da influência. (pág. 23–24)
(…) a crítica literária, como uma arte, sempre foi e sempre será um fenômeno elitista. Foi um erro acreditar que a crítica literária podia tornar-se uma base para a educação democrática ou para melhorias na sociedade. (…) Precisamos ensinar mais seletivamente, buscando os poucos que têm capacidade de tornar-se leitores e escritores altamente individuais. Os outros, que podem ser levados a um currículo político, podem ser a ele abandonados. Pragmaticamente, o valor estético pode ser reconhecido ou experimentado, mas não pode ser transmitido aos incapazes de apreender suas sensações e percepções. Brigar por ele é sempre um erro. (pág. 29–30)
Isso reduz o estético a ideologia, ou na melhor da hipóteses a metafísica. Um poema não pode ser lido como um poema, porque é basicamente um documento social ou, rara mas possivelmente, uma tentativa de superar a filosofia. Contra essa visão, exorto uma obstinada resistência, cuja única meta é preservar a poesia tão plena e puramente quanto possível. Nossas legiões que desertaram representam uma corrente em nossas tradições que sempre esteve em fuga do estético: moralismo platônico e ciência social aristotélica. O ataque à poesia ou a exila por ela ser destrutiva do bem-estar social ou lhe concede a tolerância se ela assumir o trabalho de catarse social sob as bandeiras do novo multiculturalismo. (pág. 30)
Nada é tão essencial para o Cânone Ocidental quanto seus princípios de seletividade, que só são elitistas à medida que se fundem em critérios severamente artísticos. (…) A fuga do estético, ou sua repressão, é endêmica em nossas instituições do que ainda se diz educação superior. Shakespeare, cuja supremacia estética foi confirmada pelo julgamento universal de quatro séculos, é agora “historicizado” em pragmática diminuição, precisamente porque seu misterioso poder estético é um escândalo para qualquer ideólogo. (…) Eu próprio insisto em que o eu individual é o único método e todo o padrão para a apreensão do valor estético. Mas “o eu individual”, pesa-me admitir, só se define contra a sociedade, e parte de seu agon com o comunal faz inevitavelmente parte do conflito entre classes sociais e econômicas. (…) A liberdade de ser artista, ou crítico, surge necessariamente do conflito social. Mas a fonte ou origem da liberdade de perceber, embora mal conte para o valor estético, não é idêntica a ele. Há sempre culpa na individualidade realizada; é uma versão da culpa de ser sobrevivente, e não produz valor estético. (pág. 36–38)
Os maiores escritores do Ocidente são subversivos de todos os valores, tanto nossos quanto deles próprios. (…) Ler a serviço de qualquer ideologia é, em minha opinião, não ler de modo algum. A recepção da força estética nos possibilita aprender a falar a nós mesmos e a suportar a nós mesmos. A verdadeira utilidade de Shakespeare, de Homero ou de Dante, de Chaucer ou de Rabelais, é aumentar nosso próprio eu crescente. Ler a fundo o Cânone não nos fará uma pessoa melhor ou pior, um cidadão mais útil ou nocivo. O diálogo da mente consigo não é basicamente uma realidade social. Tudo o que o Cânone Ocidental pode nos trazer é o uso correto de nossa solidão, essa solidão cuja forma final é o confronto com nossa mortalidade. (…) Shakespeare não nos tornará melhores, nem piores, mas pode ensinar-nos a entreouvir-nos quando falamos a nós mesmos. Posteriormente, pode ensinar-nos a aceitar a mudança, em nós mesmos e nos outros, e talvez até a forma final de mudança. Hamlet é o embaixador da morte para nós, talvez um dos poucos embaixadores já enviados pela morte que não nos mente sobre nossa inevitável relação com esse país não descoberto. A relação é inteiramente solitária, apesar de todas as obscenas tentativas da tradição para socializá-la. (pág. 45–47)
O estudioso legítimo do Cânone Ocidental respeita o poder da negação inerente no conhecimento, desfruta dos difíceis prazeres da apreensão estética, aprende os caminhos ocultos que a erudição nos ensina a trilhar quando rejeitamos prazeres mais fáceis, incluindo os incessantes apelos dos que afirmam uma virtude política que transcenderia todas as nossas lembranças de experiência estética individual. (…) Embora ler, escrever e ensinar sejam necessariamente atos sociais, mesmo o ensino tem seu aspecto solitário, uma solidão que só os dois podem partilhar, na linguagem de Wallace Stevens. Gertrude Stein afirmava que a gente escreve para si e para estranhos, um soberbo reconhecimento que eu ampliaria num apotegma paralelo: a gente lê para si e para estranhos. O Cânone Ocidental não existe para aumentar elites preexistentes da sociedade. Está lá para ser lido por nós e por estranhos, para que nós e aqueles que jamais conheceremos encontremos verdadeira força estética e a autoridade do que Baudelaire (e Erich Auerbach depois) chamou de “dignidade estética”. Um dos inelutáveis estigmas do canônico é a dignidade estética, que não pode ser alugada. (pág. 53–54)
Hoje todos nós andamos por aí falando a nós mesmos interminavelmente, entreouvindo o que dizemos, depois meditando e agindo com base no que aprendemos. Isso não é tanto o diálogo da mente consigo própria, nem mesmo um reflexo da guerra civil na psiquê, quanto a reação da vida ao que se tornou necessariamente a literatura. De Fasltaff em diante, Shakespeare acrescenta à função da literatura de imaginação, que era instrução de como falar a outros, a lição mais dominante, se bem que mais melancólica, da poesia: como falar a nós mesmos. (pág. 68)
Shakespeare está no centro do Cânone, pelo menos em parte, porque Hamlet está. A consciência introspectiva, livre para contemplar-se a si mesma, continua sendo a mais elitista de todas as imagens ocidentais, mas sem ela o Cânone não é possível, e, para pôr a coisa da maneira mais direta, tampouco o somos nós. (pág. 99)
Não me lembro de outro romancista forte que centre tudo em seu forte amor à leitura como faz Virginia Woolf. § Sua religião (uma palavra menor não serviria) era o esteticismo pateriano: a adoração da arte. Como acólito tardio dessa fé em extinção, sou necessariamente dedicado à ficção e à crítica de Virginia Woolf, e portanto quero pegar em armas contra as seguidoras feministas dela, porque acho que entenderam mal a sua profetisa. Ela gostaria que elas combatessem por seus direitos, sem dúvida, mas dificilmente desvalorizando o estético em sua profana aliança com pseudomarxistas acadêmicos, falsos filósofos franceses e adversários culturais de quaisquer padrões intelectuais. Com um quarto só para nós, ela não se referia a um departamento acadêmico só para nós, mas antes a um contexto no qual elas pudessem emulá-la escrevendo ficção digna de Sterne e Jane Austen, e crítica à altura de Hazlitt e Pater. Virginia, amante da prosa de Sir Thomas Browne, teria sofrido agudamente enfrentando os manifestos daqueles que afirmam que escrevem e ensinam em nome dela. Sendo ela própria a última dos grandes estetas, foi engolida por cruéis puritanos, para os quais o belo em literatura é apenas outra versão da indústria de cosméticos. (pág. 567–568)
Nenhuma outra pessoa de letras do século 20 [Virginia Woolf] nos mostra tão claramente que nossa cultura está condenada a continuar sendo uma cultura literária, na falta de qualquer ideologia que não tenha sido desacreditada. Religião, ciência, filosofia, política, movimentos sociais: são esses pássaros vivos em nossas mãos, ou pássaros mortos e empalhados na prateleira? Quando nossos modos conceituais nos abandonam, voltamos à literatura, onde cognição, percepção e sensação não podem ser inteiramente desembaraçadas. A fuga do estético é mais um sintoma do esquecimento inconsciente mas deliberado, por nossa sociedade, de seu dilema, seu resvalamento para outra Era Teológica. O que quer que Virginia Woolf possa ter reprimido numa ou noutra época, jamais foi sua sensibilidade estética. (pág. 570)
Este livro não se destina a acadêmicos, porque só um pequeno resto deles ainda lê pelo amor à leitura. O que Johnson, e Virginia Woolf depois, chamaram de Leitor Comum ainda existe, e possivelmente continua aceitando sugestões do que se pode ler. § Esse leitor não lê pelo prazer fácil ou para expiar alguma culpa social, mas para ampliar uma existência solitária. (…) Não podemos ensinar alguém a amar a grande poesia se nos chega sem esse amor. Como se pode ensinar solidão? A verdadeira leitura é uma atividade solitária, e não ensina ninguém a se tornar um melhor cidadão. (pág. 668–669)
Os motivos para ler, como para escrever, são muito diversos, e muitas vezes não claros mesmo para os leitores ou escritores mais autoconscientes. Talvez o motivo último para metáfora, ou para a escrita e leitura de uma linguagem figurativa, seja o desejo de ser diferente, estar em outra parte. Nesta afirmação eu sigo Nietzsche, que nos advertia que aquilo para que conseguimos encontrar palavras já está morto em nosso coração, de modo que há sempre uma espécie de desprezo no ato de falar. Hamlet concorda com Nietzsche, e os dois talvez tenham estendido o desprezo ao ato de escrever. Mas não lemos para descarregar nossos corações, portanto não há desprezo no ato de ler. As tradições nos dizem que o eu, em sua busca para ser livre e solitário, em última análise lê com um só objetivo: encarar a grandeza. Esse confronto mal disfarça o desejo de juntar-se à grandeza, que é a base da experiência estética outrora chamada de o Sublime: a busca de uma transcendência de limites. Nosso destino comum é a velhice, a doença, a morte, o esquecimento. Nossa esperança comum, tênue mas persistente, é alguma versão de sobrevivência. § Encarar a grandeza quando lemos é um processo íntimo e dispendioso, e jamais esteve em grande voga crítica. Agora, mais que nunca, está fora de moda, quando a busca de liberdade e solidão é condenada como politicamente incorreta, egoísta e não adequada à nossa sociedade angustiada. (pág. 675)
Obs.: Selecionei trechos sobretudo da introdução e da conclusão, mais atinentes ao próprio ato de ler e à condição do leitor. Os grifos são meus.